Jurimetria: O que os dados revelam sobre a Justiça
Jurimetria aplica estatística e ciência de dados ao Direito, revelando padrões da Justiça, ampliando transparência e apoiando decisões mais eficientes.
A Jurimetria, em linguagem direta, é usar estatística e ciência de dados para observar o Direito com lupa numérica. Em vez de olhar apenas para argumentos e conceitos jurídicos, passamos a olhar também para o que os números mostram sobre o funcionamento real da Justiça: como certos temas aparecem ao longo do tempo, em quais instâncias se concentram, quais etapas costumam demorar mais e onde há maior variação de entendimentos. A intuição por trás disso não é recente. Em 1949, Lee Loevinger publicou na Minnesota Law Review o artigo “Jurimetrics – The Next Step Forward”, defendendo que o comportamento dos tribunais também poderia ser estudado por métricas, a exemplo do que já se fazia em outras áreas. A proposta abriu caminho para um método que não substitui a dogmática jurídica, mas a complementa com descrições mais fiéis da realidade forense.
No Brasil, a discussão deu um salto com o DataJud, repositório público instituído pelo CNJ por meio da resolução CNJ 331/20. Ao unificar milhões de registros processuais, o DataJud permite enxergar o Judiciário por dentro e em larga escala. Em vez de depender de percepções fragmentadas, pesquisadores, gestores públicos e profissionais do direito conseguem responder, com mais segurança, a perguntas simples e importantes: quais assuntos dominam a pauta em determinado período, que fases processuais concentram gargalos, como variam os pedidos de tutela em temas específicos, qual o comportamento recursal em certas matérias e de que maneira novas leis ou precedentes vinculantes alteram a prática cotidiana. Essa visão panorâmica favorece transparência, auxilia a gestão judiciária e ilumina políticas públicas, porque fornece diagnósticos verificáveis sobre o que de fato acontece nos processos.
Para o leitor não advogado, vale imaginar a jurimetria como um “raio-X” do sistema de justiça. Ela ajuda a localizar decisões relevantes em meio a um volume gigantesco de julgados, a medir a frequência de determinados fundamentos, a identificar quando uma orientação começa a se consolidar e quando, ao contrário, há grande dispersão de entendimentos. Por exemplo, o profissional poderá analisar como os magistrados sentenciam determinado tema e ter uma base sobre as abordagens mais aceitas. Ao tornar visíveis padrões que a olho nu passam despercebidos – diferenças regionais em temas semelhantes, ciclos de aumento e queda de litigiosidade, efeitos de mudanças legislativas sobre a tramitação – a jurimetria oferece um mapa legível de um terreno complexo, em linguagem compreensível para pesquisadores, jornalistas, gestores e cidadãos.
É claro que existem limites e cuidados. Bases judiciais são construídas a partir de documentos muito diferentes entre si, muitas vezes escaneados sem padrão, com metadados incompletos ou categorização heterogênea. Antes de qualquer análise, é preciso tratar os dados, documentar os critérios de limpeza e tornar o método replicável. Além disso, números contam o que foi observado, não o que necessariamente causou aquele resultado: correlação não é causalidade. Mudanças na lei, alterações de competência, criação de varas especializadas ou a simples chegada de novos magistrados podem modificar séries históricas e pedir leituras cautelosas. Há, ainda, o aspecto ético e jurídico: o tratamento de informações deve respeitar a LGPD e as regras de sigilo, sobretudo quando se trata de processos que tramitam sob segredo de justiça. A boa prática exige minimização de dados, anonimização quando couber e governança clara sobre quem acessa o quê, para qual finalidade e por quanto tempo.
Mesmo com essas ressalvas – ou justamente por causa delas – a jurimetria é valiosa. Ao tornar o sistema mais mensurável, ela incentiva a transparência e cria incentivos à eficiência. Permite avaliar a efetividade de leis e políticas, expõe gargalos que precisam de intervenção administrativa e estimula consistência decisória ao dar visibilidade à como os tribunais vêm aplicando certos critérios. Também amplia a prestação de contas à sociedade: quando decisões públicas podem ser descritas em séries e padrões, o debate sobre justiça deixa de ser apenas opinativo e passa a dialogar com evidências.
O avanço recente da inteligência artificial generativa tende a fortalecer esse movimento. Modelos capazes de ler grandes volumes de decisões e peças processuais já ajudam a organizar acórdãos por temas, identificar trechos relevantes, sumarizar fundamentos e sinalizar mudanças de orientação ao longo do tempo. Em vez de entregar respostas “mágicas”, a tecnologia bem utilizada cumpre um papel mais modesto e, ao mesmo tempo, poderoso: reduzir o atrito no acesso à informação jurídica, tornar as bases mais navegáveis e aproximar cidadãos e gestores de evidências que antes ficavam enterradas em milhares de páginas. É um passo importante para amadurecer o debate público sobre o funcionamento da Justiça.
Em suma, jurimetria não é um oráculo, e sim um método. Ela descreve, compara e ilumina o que os processos já revelam, oferecendo ao debate jurídico algo que sempre fez falta: uma camada consistente de realidade mensurada. Quando aliamos essa camada à interpretação jurídica, ganhamos decisões mais bem informadas, diagnósticos mais honestos sobre o que precisa melhorar e um caminho mais transparente para acompanhar a evolução do sistema de justiça brasileiro.
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https://www.migalhas.com.br/depeso/438878/jurimetria-o-que-os-dados-revelam-sobre-a-justica
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